quinta-feira, 21 de junho de 2012

Eu sei, mas não devia.


Eu sei, mas não devia. Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir as cortinas.   E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz.   E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo de via­gem. A comer sanduíches porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: "Hoje não posso ir". A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e pelo que necessita. A lutar para ga­nhar o dinheiro com que se paga. E a ganhar menos do que precisa.  E a pagar muito mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar o que se cobra para viver.
A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes. A abrir revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias de água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o trabalho está duro,  a gente consola pensando n o fim de semana. E se no fim de semana n]ao há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre o sono atrasado.
A gente acostuma a acostumar. Poupar a vida, que aos poucos se gasta, e que de tanto se acostumar se perde de si mesma.

                                                                Marina Colasanti, Eu sei, mas não devia.
                                                                                  Rio de Janeiro, 1996,pag. 9

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Lógica Perversa


Passa o tempo
lógica perversa
tange nossa existência
O que existe em mim,
em fim

Negativa  de  uma  vida
sonhos imperfeitos
sorrisos secos
fase a fase do passado


A razão do dia 
ânsia de vivê-lo
sem medo
sem conceito
apenas admira-lo
pelo belo de ser

O amanha
um leve gesto
pedaços
fragmentos compartilhado
insatisfação que movimenta a existência

Profano que encanta
permite o proibido
esculpido na consciência
ilude a disciplina
fútil e vazia
   
                                                                   Paulo Knop – 04/2012